Há muito tempo que as crianças são visadas e tidas como um alvo fácil na publicidade. Em 2010, as minhas filhas, então uma criança e uma pré-adolescente, acompanhavam um determinado programa vespertino na televisão, uma gincana, que propunha um jogo em que os participantes telefonavam para um número de celular respondendo aos desafios, objetivando conquistar um prêmio em dinheiro.
Tais provas continham perguntas que testavam as habilidades dos participantes em conhecimentos gerais e, a cada rodada, o jogador poderia avançar na partida e chegar mais perto da recompensa final (alguma semelhança com as loot boxes?). Bem, elas não tiveram êxito na gincana, mas, no fim do mês, fomos eu e meu marido que ganhamos o “prêmio”: a conta telefônica chegou com um valor 3,5 vezes maior do que o habitualmente esperado. Questionadas, as crianças justificaram assustadas que “queriam fazer surpresa aos pais e contribuir com o dinheiro do prêmio para a viagem à Disney”.
Por que nos supermercados e lojas os produtos direcionados ao público infantil – como brinquedos, pacotes de doces, balas e chocolates – ficam nas prateleiras mais baixas? Porque é uma estratégia mercadológica e isso é de amplo conhecimento.
Ocorre que, atualmente, essas práticas antigas e passivamente aceitas pelos adultos chegaram ao mundo digital, expandindo de forma ilimitada o seu alcance e capacidade predatória.

O que falta?
O ECA Digital, denominação que a Lei N.º 15.211/2025 já recebeu (apesar de seus poucos dias de publicação), não traz muitas novidades, mas aglutina as responsabilidades e deveres que já constam em outras legislações igualmente importantes e reconhecidas como marcos legais, como o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) de 1990, o Marco Civil da Internet de 2014 e a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) de 2018.
A nova lei determina que provedores de produtos e serviços de tecnologia adotem medidas como verificação de idade, supervisão parental e mecanismos de proteção contra conteúdos nocivos e práticas predatórias, como violência e exploração sexual. Mas a maior novidade do ECA Digital, realmente, reside no conceito de acesso provável pelos menores a produtos e serviços tecnológicos que ofereçam riscos.
A proteção prioritária da criança e do adolescente, a garantia de ter assegurado o seu melhor interesse e as medidas adequadas e proporcionais de privacidade e proteção de dados já estão nas leis aqui citadas. Não nos faltam leis, faltam-nos cidadãos educados a respeito e interessados em proteger os menores: pais, mães, profissionais da educação, saúde e empresários.
Intenção, ganância ou vaidade?
Com o tempo, as empresas irão encontrar formas de atender às exigências legais. Os mecanismos computacionais, as medidas técnicas preventivas, as mudanças nos serviços digitais e o aumento do grau de proteção irão tangibilizar o privacy by default do artigo 46 da LGPD. Não faltam às empresas desenvolvedoras e usuárias de tecnologia, nacionais e estrangeiras, conhecimento e criatividade para implementar ações profiláticas de riscos à privacidade das crianças e adolescentes. O que ainda iremos levar muito tempo para ver acontecer é a mudança de mindset dos próprios usuários de tais tecnologias.
Desde que o influencer Felca publicou o seu vídeo alardeador, duas coisas me chamaram a atenção: a rapidez com que os poderes públicos tomaram medidas que já poderiam ter sido tomadas e a quantidade de pessoas dizendo que o que ele diz “é exagero, não é bem assim que acontece”. Como não? O filme Sound of Freedom mostra a que extremos se pode chegar. Vejo pais e mães, principalmente estas últimas, criando páginas nas redes sociais para mostrar os talentos (leia-se beleza física e fotogenia) de seus filhos e filhas. Mães que imploram às escolas para publicar fotos de seus filhos nas suas redes sociais e sites (“por que publicaram a foto da amiguinha da minha filha e não dela?”). Só que esse anseio por visibilidade e tendência de exposição não são acompanhados da devida atenção aos riscos por eles criados.
O que precisa mudar, de fato?
Empresas, se vocês estão preocupadas como irão atender em seis meses (vacatio legis do ECA Digital) as exigências imputadas à cadeia digital, corram, março já está aí. Mas “adotar medidas técnicas adequadas, inclusive mecanismos de segurança amplamente reconhecidos”, não é o mais complexo. Isso se consegue com planejamento, inovação, investimento em boas parcerias e alianças fortes.
A grande empreitada que a nossa sociedade tem pela frente é a mudança de crenças, condutas e comportamentos que moldam a nossa visão de mundo e influenciam as nossas atitudes. O mundo digital traz possibilidades fantásticas quando usado com cuidado e orientação por crianças e adolescentes. Pode-se conhecer o mundo em seu passado, presente e tendências futuras sem sair de casa ou da escola. Mas explorar comercial e digitalmente, monetizar a participação na internet de seres em desenvolvimento e se omitir diante dessas situações não é nada menos que covardia.
Descubra também porque a educação e a privacidade precisam andar juntos aqui.